A ARQUEÓLOGA Carlos Eduardo Thompson ® © 2025
A ARQUEÓLOGA
Carlos Eduardo Thompson ® ©
CENA 1 Tudo escuro. Um círculo de luz corre pelo palco. Ao entrar no teatro, o espectador se depara com uma instalação de arte de sítios arqueológicos terrestres e outra uma superfície lunar . Voz em OFF.
OFF. Estamos em 2026 , aqui na Lua em uma pesquisa arqueológica lunar onde uma arqueóloga apaziguadora procura maneiras de deixar todas as pessoas da sua equipe em Terra confortáveis e, assim, evitar qualquer tipo de desentendimento. Ela é mediadora nata aliada à capacidade de ponderar diferentes pontos de vista e está sozinha.
Johanna está no sítio arqueológico lunar onde existem objetos cena
Johanna - Como qualquer outra mulher madura, procuro alguém que me faça feliz nas horas chatas. Coisas importam para mim , sim. Alguém que leve a sério meus desejos. Não quero pessoa que coloca limite, pois permito pessoas inteligentes adentrarem meu corpo e gosto de fluir. Sou arqueóloga, modelo, mãe, amo a estética e claro que já vivi de tudo com a graxa da falta de freios que você limpar se quiser se fundir comigo.
Johanna continua no sítio arqueológico na cena 1
Johanna - Vou tomar uma depois. Meu grande amor foi um arqueólogo. Com a morte dele , em um trabalho de campo aqui na Lua , comecei a me entender. Palavras no começo , para quem quiser entender assim. Essa mulher arqueóloga já estava em mim. E os movimentos sociais que mulheres arqueólogas fizeram já nos anos 60. Mulheres, mães e arqueólogas. Eram consideradas subversivas. Liam Chomsky , Kerouak.
O foco de luz se projeta sobre Johanna, uma mulher altiva e com olhar épico. Usa um casaco e calça de couro pretos. Uma intelectual que desfruta da elegância de seu próprio pensamento.
Johanna - Aprendi com ele a ser arqueóloga. Mostrar minha essência real , vivendo e morrendo a cada dia. Ele também me ensinou a não cair em coisas que se tornam tolas com o tempo. Incluindo aqueles amores ou amizades que apresentam uma nota fiscal de cada sacrifício. Cada sacrifício que se faz em nome do outro ou em vez de se adaptar às adaptações bonitas do amor ou da amizade. Mas eu não tinha maturidade. Arqueólogos , homens e mulheres cultivam amizades por décadas.
Johanna abaixa a cabeça. Sente culpa.
OFF. Maturidade é estar em uma discussão existencialista em uma corrida de carros vintage , com iluminação saudosista, mística e com bebedeira. Adaptar é aceitar não querer ter filhos de forma natural. Pode ser com barriga de aluguel em Kiev, na Ucrânia.
Johanna - Não abri mão da vontade de ser mãe quando ele era vivo. Tivemos uma linda filha , quando fui barriga de aluguel em Kiev para ele , pois eu tinha contas para pagar. Hoje ? É aceitar uma dança ouvindo Barão Vermelho no Morro da Urca e um bilhete amoroso no Empório 37 em Ipanema tomando um drink chamado Orgasmo nas datas importantes em vez de esperar presentes caros e luxuosos. Há campos floridos em outros lugares que não estão à margem da sociedade. Mas a mulher arqueóloga gosta de coisas autênticas e alternativas.
OFF. Grande parte dos planos de uma arqueóloga aos 40 anos sai do papel nessa idade. Muitas entram na militância e fazem trabalhos comunitários em reservas ambientais.
Johanna - Hoje sou rica, sensual. Talvez um pouco insegura e manipuladora. Trabalho com autistas adultos na praia da Macumba no Rio de Janeiro em parceria com surfistas imigrantes. Ensino arqueologia subaquática.
Johanna abre um livro. Começa a ler.
Johanna - Já sacudi uma arqueologia que era doente e cancerosa, sem teto . Sem visão. Meti a cara . O pior que podia sair era um tapa na cara. Todos nós somos muito oprimidos em nossas vidas cotidianas. A coisa é repleta de altos e baixos. Sonhos, mas também ações.Eu estou aqui na Lua. Com um texto escrito por um arqueólogo que amei .
OFF. A mulher arqueóloga é como alguém embriagada por algo, é resiliente, pois sua vida tem vários objetivos e centenas de motivações para estar aqui e agora.
Johanna - Não demorei em iniciar uma coisa, mas o que existe são dias extremamente difíceis. Em branco. Quando sinto, sou concentrada e voraz.Renascimentos acontecem todo dia , toda hora.
OFF. Sinta uma felicidade genuína pelas conquistas.E que, quando elas não derem certo, te diga para ir em frente com atitudes e não com gestos.
Johanna - Ando com medo de me perder , de imaginar . Simplesmente imaginar. Virou um ato diário a luta por poder imaginar. É um estado que congrega sonhos, ilusões e fantasia. Alimentado pela memória. Súplica para se tornar realidade.
Anda no palco com um livro na mão.
OFF. 8 km de litoral no Brasil e 300.000 km de sítios fluviais em território brasileiro. 300.000 toneladas de detrito espacial caindo na Terra.
Johanna abre o livro .
Johanna - Não tenho medo de mostrar minhas oscilações estéticas. São muitas. Esse livro aqui na minha mão é memórias do homem que amei. Que aceitava minha bisexualidade. Minha beleza , minhas indecisões. Ele me compreendeu pois o equilíbrio não é apenas um ideal, mas um modo de viver e de se relacionar com o mundo.
Johanna aponta para o livro. Como uma confissão.
OFF. Quando alguém pensa em solução , ela tem que olhar que realmente possui. A atitude banal, seguida poeticamente por uma avalanche de sensação, é pétala de rosa caindo. Tem cheiro. Tem cor. Existe.
Johanna - Aqui eu me sinto constituída de pétalas, muitas. Firmes. Sobrepostas umas às outras.
Uma projeção de um arqueólogo com trajes espaciais joga pétalas de flores. Cai uma pétala e ela se dobra. Johanna sorri olhando.
Johanna - Nunca havia sentido isso. O meu amor apareceu para mim.
Johanna se dobrou para tirar um fio da calça
Johanna - Essa avalanche de sensação.
Johanna chega perto da platéia andando e olhando para o público.
Johanna - Quando voltei a me recompor, perguntei o que ele estava dizendo.
OFF. A gente pode achar que tem camadas. E temos. Você pode ter uma vibe intelectual, que pode ser diferente da sua vibe estética, que pode ser diferente do que você acha e sente sobre a sua personalidade, entende? A nossa cabeça tem uns mecanismos assim que fazem com que a gente não veja certas coisas. Não sabe o que fazer.
Johanna - Outro dia , olhando arquivos em um sebo , li que um navio americano pesando 122 toneladas e com um valor estimado de US$15.000, que foi o Mary & Smith, foi construído em Massachusetts e no Rio de Janeiro para o comércio de escravos. Isso aconteceu também aqui na Lua, de outra forma.
OFF. Em 25 de agosto de 1855, a escuna chamou a atenção das autoridades britânicas e norte-americanas por ter 48 famílias holandesas , judaicas nascidas no bairro do Catete . Nova York existe por causa do Rio. A Marinha do Rio de Janeiro alertou autoridades britânicas, brasileiras e americanas sobre os planos da escuna e a ligação com a terceira invasão holandesa.
Johanna - Eu sou conclusa. O modo como tomei consciência de mim mesma. Cada caixinha requer e pede formas de caracterização. Dizer quem é , o que é . Eu ouvi aí vagamente umas filosofias furadas. Mas quem estava falando?
OFF. Agora é se reconhecer como sujeito. Protagonista de sua história. Acredite na sobrevivência de uma nudez não dita, mas a rigor sublinhada. A nudez da alma, a esperança de quem sabe quem um dia saia do medo.
Johanna - Agora o medo passou . O sentimento é comparado à queda de uma pétala de rosa, com toda a sua delicadeza.Mary Beaudry , Jacquelyn White , doutora Henrich, minha avó que foi assassinada pelo governo chileno nos anos 70. Eram arqueólogas como eu . Eu sou Johanna Hammann , uma arqueóloga militante , mãe . Atuo na área espacial e subaquática , pois modelos e arqueólogos viajam muito.
OFF. A sensação foi de prazer, encanto e beleza. Um monte de coisas .
Johanna - Mas como é que a gente percebe de fato ? Pelas nossas escolhas ? A gente não escolhe . Acredita.
OFF . Literalmente destruímos uma situação e afastamos pessoas legais, boas ideias. As originais. Tem gente que tem medo do original, por ser puro.
Johanna aponta o dedo para algum lugar para afirmar algo.
Johanna - Quando você acha alguém que é meio lixo ou totalmente lixo, você vai lá e dá moral para essa pessoa. Fazer as coisas , resolver essas coisas são diferentes.
OFF. Por uma razão bem conhecida, todos ficam ali no erro, fazendo bola de neve, no paralelo. Acomodado. E do nada a necessidade faz todo se mexer .
Johanna - O valor que eu tenho é do tamanho do meu parceiro que morreu aqui. É grande. É isso. então, é basicamente, é bem simples. Basicamente você escolhe pessoas, mesmo diante de uma fileira de opções, você vai escolher pessoas que você acha que estão do tamanho do seu valor.
CENA 2. Entra música 00:47 Segundos - 01 Minuto:45 Segundos | The Working Hour · Tears For Fears.
Johanna - Perdi tempo em perceber que posso estar até sendo seletiva. Unir razão e emoção, justiça e beleza, e que a verdadeira força está em manter a elegância e a serenidade mesmo diante dos desafios.
Entra Música. “The Ground Beneath Her Feet “, U2. Tempo 00 51 - 01 minuto e 02 segundos.
OFF. Pessoa, nem sempre possui um sentimento de fato. Sentimentos mudam. Por alguma razão ela ficou presa ali, mas sempre sabe o motivo. Todo mundo.
Johanna - O tempo não volta só porque a gente se arrependeu. As coisas não mudam, né? Elas não voltam atrás, as oportunidades não voltam só porque a gente se arrependeu.
Entra a imagem projetada no fundo em flash por 3 segundos.
CENA 3 . Mudança de cenário dentro do mesmo palco. Durante 3 minutos no palco , Joanna é impulsionada por um algoritmo generativo que simula a evolução humana. Na cena 3 , a atriz e o público visualizam a fragilidade e a inevitabilidade dos processos naturais. Os espectadores são convidados a vir ao palco pela própria atriz. É uma experiência meditativa de observar uma geleira se desintegrar lentamente a partir de perspectivas mutáveis. Cada iteração gera padrões únicos de fragmentos de artefatos projetados a laser à deriva no ar. Ao manipular cuidadosamente o fluxo e o ritmo do processo de fusão, à deriva constrói uma narrativa absorvente - que destaca a complexidade sutil dos sistemas de pensar o passado e oferece um momento de reflexão sobre como o impacto humano acelera a mudança natural irreversível. Johanna não fala. A fragilidade da personagem e do público é apenada em silêncio. Essa interação com o público começa com um audiovisual a laser MIMIC que combina laser e tela de LED em um sistema integral que forja imagens existentes simultaneamente na atmosfera e na superfície da tela. Os feixes de laser imitam características da imagem na tela, que por sua vez imita o laser. Esse loop de mimetismo enfatiza a interação entre as duas entidades e introduz características materiais à percepção da luz na instalação. Ela fica sozinha durante 30 segundos e chama o público para o centro do palco. As pessoas voltam para os seus lugares na platéia. Johanna volta ao centro do palco.
Johanna - Há em mim um encanto que não se explica, um sopro de mistério que se espalha, como brisa que chega sem ser chamada e, de repente, toma todo o meu ar. Meus olhos carregam segredos antigos, brilham como estrelas, olha só . Não se apagam, e cada vez que me perco neles, sinto que minha alma se curva ao feitiço que meu olhar desenha. EStou no momento de voltar para a Terra.
A cena 3 termina com uma segunda instalação de tecidos suspensos durante 1 minuto. Passa da Lua para a Terra.
CENA 4. Johanna volta para a Terra. Johanna fica apenas sentada encostada num carro de corrida dos anos 70 em um sítio arqueológico na Terra.
OFF. Memória e saudade trazem desejos, saudades, boas, adoráveis. Amamos até perder ou se achar na ilusão. De joelhos vasculhando o chã, assim é a procura. De tudo.
Johanna - Sinto agora que estou lúcida e madura . Desejei o fim de lembranças. Nós mulheres, arqueólogas , pessoas reais, desejamos ser alcançadas pelo acontecimento porque estamos comprometidas com as circunstâncias que nos cercam. Quando temos a capacidade de escutar as circunstâncias das nossas vidas, a pele se torna um tecido permeável para os acontecimentos se inscreverem. Esta permeabilidade é a maneira de nos “ex-pormos”.
CENA 5. Momentos. Imagens são projetadas lentamente com casas para morarmos do passado no Tibete, meios para atravessarmos o Estreito de Bering há 40.000 anos .
JOHANNA : Preciso aprender a querer menos. Ando remendando um coração partido e não costuro bem. É longa a avenida de clichês que se engarrafam na minha cabeça. Me asolam desejos insanos. Quero subir e gritar um nome bem alto. Quero pichar o Pão de Açúcar com versos apaixonados. Pronta para um novo amor com uma garota que está defendendo sua tese de pós-doutorado no Museu Nacional.
OFF. A mulher arqueóloga sempre tem a intuição de que morre de repente. Mas sempre estou apaixonada. Intensa.
Johanna - Sou acometida por uma explosão interna de luxúria. Estou viva e registrada com meu DNA na vida. Com minha pesquisa lunar pronta.
OFF. Hoje tudo está sujeito a fundamentalismos.
Johanna - Agora vou plantar bandeiras de amor nos arranha-céus de Xangai e anseio por lavar o chão de uma rodoviária ou marchar sobre os cotovelos, se isso tornar possível a minha breve história contada. Que na verdade não só é minha , mas de todos os endereços, partes, cidades, nações, celulares , sítios arqueológicos lunares ou terrestres , de cada pessoa.
OFF. O mundo dos dogmas, que agora foi quebrado , é uma paisagem para viver. Sentir. Sonhar.
Johanna - A beleza do mundo é o espetáculo, desvendando coisas. Menos posições ideológicas e mais gestos. Máscaras apenas para decoração. Não só rostos, mas também peles mais suadas e visceralmente. Tudo o que é artifício torna-se uma superfície. Mais encontros e menos suspeita, onde você faz o que quer.
OFF. O sentimento do mundo é cordial. E tem dias de decisões porque o desvelamento entre o visível e o invisível ocorre através de visões e sonhos. Entre as visões, aquelas que existiam há 14 mil anos.
Johanna - Plantarei um World Trade Center inatacável dentro do meu coração durante quatro luas para a noite engolir o escuro que havia dentro de mim. Hora de recomeçar o amor.
Johanna pede ao público acender seus celulares . Ela filma.
Johanna - Ser arqueóloga. Ser acompanhada dos seres que amam sem medo , sem esquecer quem amei. Vou em procissão, pedir que libertem mulheres para amar outras mulheres. Será minha última escavação arqueológica.Vou pedir também que a vida seja boa . E feliz efetivamente.Vou construir uma capela na colina mais bonita, para lembrar que tenho esperanças, que a vida é boa sim.
Neste instante a arqueóloga pega uma areia no chão, levanta e joga ao chão lentamente. A arqueóloga Imperador dá uma risada. Depois ela se senta no rover lunar cenográfico.
Johanna - Sento e espero um milagre. E se nada acontecer, não morro, cansada de esperar a cada dia que meu corpo grita por outro . Eu só queria andar de mãos dadas e viver contente ao lado . Mas agora sou surfista e ativista pela preservação de sítios arqueológicos subaquáticos.
Entram em cena duas pessoas performando. Voz em off .
Johanna - Termino meu trabalho na Praia da Macumba, no Rio de Janeiro, onde moro e cuido de autistas com o apoio de surfistas refugiados e profissionais. Ser mulher em arqueologia é estar na lacuna entre identidade e alteridade.
As duas pessoas continuam performando. A voz em off prossegue.As duas pessoas saem de cena.
Johanna — Meu sorriso é claridade rara, não apenas ilumina — mas aquece, como fogo manso que se estende pela pele e me faz desejar o impossível: ficar para sempre perdida nesse instante. Toda arqueóloga é uma série de pérolas pretas e rosas. Sim, eu forneço metáforas. Você sabe construir metáforas?
OFF. As lutas por justiça social também são travadas sobre conceitos.
Johanna - Agora eu preciso ir. O que soava em uma curiosa harmonia com o que eu tinha pensado e com a impressão de um suave , sei lá , deslizamento de vida , foi seguido de reajuste. A impressão de pétala caindo em um sítio arqueológico e de uma rosa completa.
OFF. Mas seria isso felicidade ?
Johanna - O roteiro da vida de uma arqueóloga é crisálida, e o produto é uma borboleta. É isso que você quer ver, entender e admirar. Transmutar, experimentar. On the road.
Johanna, vai andando em direção à saída do palco e, antes de sair , para e olha para o público e faz sua última fala.
Johanna - Eu sei que vocês querem ver . Entender . Admirar . A cada dia vai crescer o respeito pelo trabalho da arqueóloga brasileira. Até breve.
A luz apaga.
FIM
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